domingo, 9 de maio de 2010

Os filhos dessas mães (Eduardo Guimarães)

DO BLOG CIDADANIA

(http://edu.guim.blog.uol.com.br/)

Terça-feira, 4 de maio, meio da tarde, rua Amaral Gurgel, bairro da Consolação, centro de São Paulo.

Faz mais calor do que prometeu a previsão do tempo. Arrependo-me de ter ido de metrô ao centro, sendo obrigado a caminhar por ele carregando uma bolsa pesando uns 5 quilos e usando uma camisa de mangas compridas, o que me faz suar e ofegar.

Devo ir à rua Rui Barbosa. Dá para ir a pé. É menos de um quilômetro.

Contudo, há um problema: terei que atravessar a desértica via expressa que passa sob a praça Franklin Rosevelt – e o local, apesar do grande tráfego de carros, é perigoso, pois habitado por moradores de rua que assediam qualquer um que passe por ali.

Parece-me preconceito. E, afinal, é a minha cidade. Sinto uma sensação de perda ao sentir medo de caminhar por ela.

Decido, pois, que, tomando cuidado, devo enfrentar aquele medo. Aventuro-me pelo ponto da Amaral Gurgel em que ela mergulha sob a rua da Consolação e a praça Roosevelt .

Água empoçada na calçada larga, no sentido centro-bairro, muita sujeira, paredes pichadas, má iluminação e um cheiro insuportável de urina.

Caminho cerca de vinte metros e, sob um vão do viaduto, num canto escuro em que parece haver toda a sujeira do mundo, vejo um ser humano maior e três pequenos que se movem ao seu redor.

Tiro os óculos escuros de grau – até porque, já me impediam de ver onde pisava –, coloco os convencionais e forço a vista cansada na direção do adulto cercado de crianças, agora já sentindo náuseas devido fedor.

A cena que diviso é sempre deprimente. O adulto está sentado e tem um cobertor ou manta sobre as pernas – naquele calor. Suas roupas e as das crianças, bem como as peles de todos, têm um tom cinzento – uma ilusão de ótica causada pela sujeira que os impregna.

Levo comigo um computador, dois celulares e quase trezentos reais no bolso, mas são apenas uma mulher e três crianças. A maior não tem dez anos. Sinto-me patético pelo medo que me inquieta, ainda que saiba que temer até mesmo crianças, nestas megalópoles enlouquecidas, está longe de ser covardia ou paranóia.

De repente, o grupo cinzento me nota. Sinto um frio na barriga e um ímpeto de voltar por onde vim – correndo. Mas as crianças são mais rápidas. Antes de concluir se devo ou não retroceder, já estão à minha volta. A mulher começa a se levantar...

Permaneço imóvel. A calçada, naquele ponto, é bem larga. Mais de dez metros me separavam do grupo. Haveria tempo de voltar, mas me sentiria mais ridículo ainda fugindo de uma mulher e de três crianças do que já me sentia por estar com medo.

Uma das crianças, a menina maior, uma caboclinha de cabelos duros de sujeira, usando uma blusinha de botões que só lhe serviu quando era menor e que já deve ter sido vermelha, e uma saiazinha de brim com umas tachinhas enfeitando que já não cobria mais nada, pede-me um cigarro (!).

Não respondo, mas não fujo. Fico ali, imóvel, sem saber o que fazer. Negar o cigarro será uma provocação, até porque o maço é visível no bolso da camisa. Então, decido apelar para um tom amistoso e bem-humorado para ganhar tempo e ver até onde é possível dialogar.

-- Como é seu nome, meu bem?

A menina resmunga alguma coisa com uma voz meio inaudível, meio gutural que me impressiona e assusta. Agora já estou arrependido de não ter ido de carro ao bizarro e caótico centro de São Paulo.

As crianças já me cercam e a mulher, agora coberta pela manta como uma beduína, está praticamente junto de nós. Achei que me pediu “um trocado”. Mas minha maior atenção estava no pequenino, de uns seis anos, que toca na pasta que levo a tiracolo com o dedinho indicador sujo, repelente.

A mulher já está diante de mim à distância de um braço. Noto que é jovem, apesar do rosto inchado. Deve ter uns 25 anos. Pergunto-lhe se é a mãe das crianças, ao que ela balança a cabeça em confirmação. E passa a me encarar fixamente, com o cenho franzido.

Posso lhe sentir o hálito rescendendo a álcool e um fedor de urina insuportável. Começa a falar de uma forma tão desconexa que não consigo entender uma única palavra do que diz. Sou tomado pelo horror, diante da situação, e me sinto extremamente covarde e preconceituoso.

O garotinho, de uns seis anos, já segura minha pasta com as duas mãozinhas e o resto do pequeno grupo já me cercou completamente.

Antevejo que outros tocarão em mim e decido ir embora dali. Não conseguirei conversar e só usando a força poderei conter os abusos que agora tenho certeza de que aumentarão.

Caminho mais rapidamente do que as crianças conseguiriam acompanhar sem correr. Além do que, a mulher mal se agüenta em pé.

Para minha surpresa, não me perseguem. Mas começam a me xingar, todos ao mesmo tempo. Entendo alguns palavrões, mas as vozes cobrem umas às outras e as palavras incompreensíveis da mulher sobressaem às das crianças, tornando a situação ainda mais bizarra.

Foi fácil me distanciar. Quando me dou conta, já estou diante do local a que me dirigira, na rua Rui Barbosa. Estou suando e ofegante. Sinto-me péssimo. Patético. Fugi de uma mulher caindo de bêbada e de três crianças pequenas.

Ao mesmo tempo, sinto revolta. Que sociedade é esta que permite que parte tão significativa da população perambule pelas cidades naquelas condições? Ocorre-me um pensamento curioso: que vergonha sinto dos estrangeiros que vêm a São Paulo e se hospedam no centro – e são muitos.

Revolto-me com um Estado irresponsável. Em seguida, cogito sobre o futuro daquelas crianças. A menina maior, trajando aquelas roupas curtas, logo será mocinha, apesar de que já daquele tamanho é um prato cheio para pervertidos nas ruas. Mas quantas outras crianças ela colocará nessas ruas?

Que será dos filhos daquela mãe, meu Deus? O que será deste país até que esta nossa sociedade moralmente enferma descubra o que ela semeia ao permitir barbaridades como aquela? E, finalmente, quanto irá demorar até que me esqueça daquela tarde?

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